Ciúme em Dó Menor
O carinho com que o marido pega no microfone é um sofrimento: entre aquelas mãos só poderiam estar as mais íntimas partes do seu corpo.
Clara sente mais ciúmes da música do que sentiria de outra mulher. Os possessivos não conhecem limites: são vigilantes de olhares, suspiros, tom de voz, e até da sombra da pessoa amada.
Se Clara, por acaso, cruza com Elvis Presley, o Rei do Rock corre o sério risco de finalmente morrer.
Dividir o homem que ama com Robert Johnson, Muddy Walters, B.B.King não é fácil para uma mulher que está com o coração fora do tom.
O marido fez da Música território livre para sonhos, e, do Direito, dinheiro para pagar boletos. Ensaiar com sua banda de Blues no escritório que eles dividem é uma traição imperdoável.
Quando o terno e a gravata dão lugar à camiseta preta estampada, com a calça e jaqueta de couro que combinam com o Gumex do topete, colar e pulseira, Clara vê exagero.
O carinho com que o marido pega no microfone é um sofrimento: entre aquelas mãos só poderiam estar as mais íntimas partes do seu corpo. E o olhar sedutor do marido para o público... Os aplausos são um insulto à parte que a arte impõe a sua alma desafinada pelo ciúme.
Ela luta para manter a harmonia e o ritmo no dia a dia. Mas não consegue disfarçar seu ciúme quando seu amor solta a voz ou se cala para ouvir Lee Hooker e Freddie King.
Ele responde: "data vênia. É preciso cantar a vida, e eu nasci para cantar. O blues está na minha alma".
Sem entender o ciúme da mulher pela música, ele confessa: "ela gosta de música, só não gosta que eu goste". E reza todos os dias para nunca ter que escolher entre a música e o amor, pois o sol que não esconde em si o faz cantar para a mulher amada:
"Por um instante, meu amor esqueceu o blues, e veio colar seus lábios nos meus" .