O Amor Subiu o Morro
No morro que tem a cor do amor e da sua política, a protagonista desse texto não sabe o que dói mais: a dor do ciúme ou a dor da ausência.
Sentir ciúmes é uma bandeira vermelha, um motivo para ficar alerta? Ou seria uma prova de amor? O ciúmes pode ser apenas uma indicativo de insegurança, medo ou sentimento de posse?
Antônio era tão possessivo que nunca levou Ana a um restaurante. Um dia, ele disse: "meu amor, odeio quando você usa óculos, pois assim não consigo saber onde os seus olhos miram".
Tomado de ciúmes, já lhe aconteceu de quebrar tudo o que via pela frente, mas em sua baixinha ele nunca encostou um dedo. É evidente que esse comportamento às vezes incomodava sua companheira, embora ela diga até hoje que foi a mulher mais feliz do mundo e que aceitaria tudo outra vez.
Ana nasceu em São Paulo, e lá conheceu Antônio, onde casaram-se e viveram um amor tão intenso a ponto de superar o amor de mãe: ela não vacila em dizer que ama mais o marido do que os quatro filhos juntos.
O marido também nasceu em Sampa, mas, decidiu morar na terra dos pais, em Morro Vermelho, no município de Caeté. Ana decidiu morrer no lugar em que passaram tantos anos juntos, após se mudarem para o campo. Se a vida tem fim, ela diz, nada mais sábio do que escolher o local da partida.
"Se eu morrer amanhã, seu doutor estou pertinho do céu".
Uma filha já tentou levar a teimosa mãe, de 81 anos, para a Capital. Ana tem toda razão em não ir: em seu minifúndio, ela vive na companhia de três cachorros e, nos fins de semana, recebe a neta que também ama a terra vermelha próxima à Serra da Piedade.
Quem conversa com Ana, impressiona-se com sua perspicácia. O que se diz na TV e na internet ela filtra muito bem, e suas opiniões políticas são das mais lúcidas.
Mesmo sem ter certeza se Antônio está por perto, no início e no fim de cada dia ela conversa com ele sobre os assuntos mais variados.
"Ah, Antônio! Desde que você partiu, continuo a mesma de sempre, e do que eu abria mão por respeito, hoje recuso por amor. Nunca um homem me deu um abraço, um beijo no rosto, nunca coloquei óculos, e continuo sem saber o que é um restaurante, meu amor".
Afinada, quando a saudade aperta sempre canta para seu amado o sucesso de Nana Caymmi: "onde você estiver, não se esqueça de mim. Eu quero apenas estar em seu pensamento".
Comenta com o amado o sucesso da filha e as coisas mais banais: "como nossa filha tem cantado tão lindo nos palcos de Belo Horizonte. Ontem, um passarinho bateu na nossa janela de vidro e quase morri de dó".
"Querido, estou pensando em ir a Liverpool novamente para visitar as meninas. Nossas filhas são maravilhosas! Quero passar na Itália para abraçar nosso filho. Ah, Antônio! A Itália é tão charmosa, mas o nosso Morro será sempre a coisa mais linda deste mundo".
"Eu já não consigo ler nem com a lupa, mas não me importo. Já li tanto, né? Dizem que agora há livros em áudio, mas acho que eu sentiria falta do cheiro do papel..."
Nos últimos dias da vida de Antônio, Ana mentiu por amor. Ele disse: "meu amor, fico triste por você nunca ter sentido ciúmes de mim".
Um dia depois, ela disse com uma voz séria: "eu não quero ver você conversando com aquela enfermeira". "Qual?", ele perguntou.
"Aquela bonitona que traz seus remédios" , ela respondeu. E ele sorriu feliz.
Em seu delírio, ele, que adorava gatos, disse: "olha, Ana, que lindo o gatinho na janela!". E ela novamente mentiu: "é muito lindo mesmo. Vou dar um pedacinho do seu pão para ele".
"Ah, Ana, como você é maravilhosa!"
No morro que tem a cor do amor e da sua política, a protagonista desse texto não sabe o que dói mais: a dor do ciúme ou a dor da ausência. Ana colhe seu manjericão, suas laranjas, jabuticabas e sonhos de poder reencontrar seu amado quando o Criador decidir que chegou a hora.